domingo, 12 de outubro de 2008

Tradição, Estado e Mercado

Adam Smith, o pai da economia tinha em todo o seu estudo a ideia muito presente, que o mercado só funcionaria correctamente dentro de um forte e estável quadro cultural que evitasse a anarquia e o despotismo. O mercado precisaria de confiança, e esta segundo ele, só existiria no meio de uma sociedade em que as regras da civilidade fossem respeitadas por todos.

Quem estudou ou simplesmente se interessa por economia, sabe perfeitamente que esta ciência assenta em dois postulados fundamentais (racionalidade e equilíbrio) e que o problema económico se resolve por mecanismos próprios, a saber: pela tradição (regras básicas de convivência em sociedade), pelo Estado (regulador) e pelo mercado (no qual se verifica a relação livre e directa dos agentes interessados estabelecendo um equilíbrio entre si). Um sistema económico baseado só em dois dos referidos mecanismos dificilmente poderia funcionar, já dizia Adam Smith (1723-1790).

Quando analisamos os acontecimentos que tiveram na génese da actual crise financeira/económica mundial, percebemos facilmente que, várias das regras básicas da ciência económica foram sistematicamente violadas e que, por isso mesmo, outro resultado não seria de esperar, senão o desenlace na actual crise. As grandes instituições financeiras americanas criaram produtos financeiros de alta rendibilidade e de grande vulnerabilidade. Numa fase de crescimento económico, concederam créditos imobiliários sobreavaliados com taxas de juros elevadas, a clientes em situação de precariedade de trabalho, sem poder económico e sem possibilidade de oferecerem garantias adicionais de cumprimento das suas obrigações contratuais.

Poder-se-á facilmente compreender que, na base da decisão dos bancos, não estiveram presentes os princípios da racionalidade e do equilíbrio. Repare-se que, uma escolha é considerada irracional se um agente, deliberada e conscientemente, entre duas alternativas possíveis, seleccionar aquela que sabe ser a que considera pior. Não sejamos ingénuos. Os líderes daquelas instituições, muitos deles formados Harvard e noutras das melhores escolas americanas, sabiam perfeitamente que os produtos financeiros que criaram, tinham apenas como objectivo a obtenção de rácios de rendibilidade imediatos, que lhe garantiam a eles próprios avultados prémios, com os quais construiriam enormes fortunas pessoais. Conheciam claramente o risco de violação dos contratos de crédito concedidos e as consequências para as suas instituições a médio e longo prazo. Por essa razão (não só por questões de financiamento), resolveram vender parte desses créditos a outras instituições nacionais e internacionais, através de fundos imobiliários, como forma de mitigarem o risco.

Neste contexto, podemos identificar outros agentes que contribuíram para a crise: - os investidores, especuladores das bolsas ("jogadores de roleta, agentes parasitários"), que enriqueceram fora do contexto da economia real. Também eles agiram em contraponto aos valores da ética, desrespeitando as regras da civilidade.

O Estado (Administração Bush), cujas decisões influenciam directa e indirectamente não só a USA mas o resto do mundo, preferiu também privilegiar o desenvolvimento de políticas económicas que visassem a obtenção de resultados no curto prazo, em detrimento dos resultados de médio e longo prazo. A Administração Bush tentou tirar aproveitamento político dos efeitos do enorme crescimento do mercado imobiliário, muito dele, fruto dos créditos "Suprime", mesmo sabendo da sua insustentabilidade e da previsível desvalorização do produto a estes associados.

Os analistas e especialistas económicos ao serviço da administração Bush, conheciam certamente os riscos e possíveis consequências do crédito mal parado e os seus efeitos contaminantes nos mercados financeiros em geral e também, a possibilidade da economia real ser afectada e os USA entrarem em recessão. Entusiasmados com o crescimento económico, cometeram um erro de cálculo de previsões da chegada da crise. Pensavam ele que os seus efeitos chegariam mais tarde, possivelmente depois das eleições presidências.
O Estado não desempenhou o seu papel de agente económico regulador e de garantia de sustentabilidade dos mercados, por hipocrisia e irresponsabilidade política. Bush teve igual a si próprio e o mundo há muito tempo não conhecia tanta anarquia e tanto despotismo, e por isso tanta desconfiança.

Todas as medidas que venham a ser implementadas para restituir a confiança, poderão até ter algum resultado imediato junto dos especuladores da bolsa, de alguns investidores e no mercado interbancário, mas duvido que, tão depressa chegue ao consumidor comum. Tenho alguma esperança que o cidadão comum finalmente tenha percebido que, é ele quem vai sofrer mais os efeitos da crise e também que, é ele quem mais vai contribuir com os seus impostos para pagar a maioria das medidas que têm sido anunciadas para tentar restabelecer a confiança aos mercados. Percebeu ainda, até onde pode chegar a ganância dos líderes das instituições financeiras e a ambição dos líderes da política, mesmo que estes últimos estejam encapuçados pelo disfarce da democracia.
Só teremos crescimento económico verdadeiro, gerador de riqueza real sustentável, quando finalmente houver mais economia e menos "finanças" e quando todos os agentes cumprirem os princípios económicos de Adam Smith. Nessa altura o mundo não poderá ser governado por gente como Bush e as principais instituições financeiras não poderão ter como gestores gente sem escrúpulos.

Serrone

Sem comentários: